Na área da saúde pública, uma das propostas legislativas que mais movimentaram o Senado no ano passado foi a chamada PEC do Plasma (PEC 10/2022), que prevê uma grande mudança na forma como o Brasil lida com o sangue humano. Após intensos debates, a proposta de emenda à Constituição foi aprovada em outubro por uma Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania (CCJ) dividida — foram 15 votos favoráveis e 11 contrários.
Atualmente a Constituição, no artigo 199, proíbe que o sangue e qualquer um de seus componentes sejam comercializados, tal qual ocorre com os órgãos.
De todo o material que os bancos de sangue públicos e privados colhem no país, por meio de doações voluntárias, uma parte é utilizada em transfusões e o plasma sanguíneo que sobra deve ser enviado à Hemobrás, a empresa estatal ligada ao Ministério da Saúde que cuida da transformação dessa matéria-prima biológica em medicamentos hemoderivados destinados ao Sistema Único de Saúde (SUS).
De acordo com a PEC do Plasma, a Constituição seria alterada para que os bancos de sangue privados ganhem o direito de vender o plasma, parte que muitas vezes não faz parte das transfusões. Quem compraria esse componente seriam empresas farmacêuticas, que o processariam e venderiam os medicamentos ao mercado privado e à rede pública.
O tema continuará provocando discussões neste ano, já que o próximo passo da PEC do Plasma é a votação no Plenário do Senado, o que ainda não tem data marcada. Se for aprovada, a proposta será remetida à Câmara dos Deputados.
A divisão dos senadores da CCJ refletiu a mesma divisão das instituições e dos grupos que lidam com o sangue e a saúde pública.
Pedem que a mudança constitucional não seja aprovada o Ministério da Saúde, a Hemobrás, o Conselho Nacional de Saúde, a Fundação Oswaldo Cruz, as entidades representativas dos secretários estaduais e municipais de Saúde, os bancos de sangue públicos e a Associação Brasileira de Pessoas com Hemofilia.
Entre os defensores da PEC do Plasma, por sua vez, estão a Associação Brasileira de Bancos de Sangue, que representa os hemocentros privados, a Associação Brasileira de Hematologia e Hemoterapia, que congrega os médicos especialistas nas doenças do sangue, e a Associação Eu Luto pela Imuno Brasil, que fala em nome dos pacientes com deficiência imunológica.
Quem apresentou a proposta foi o senador Nelsinho Trad (PSD-MS), que é médico. Ele conta que tomou a iniciativa após ouvir a avaliação de médicos especialistas e queixas de pessoas que fazem uso contínuo de medicamentos derivados do sangue.
— O SUS não consegue atender à demanda de hemoderivados, particularmente a imunoglobulina. Sem elas, os doentes podem morrer — diz Nelsinho.
Ele lembra que a Hemobrás não produz medicamento nenhum porque, apesar de ter sido criada por lei em 2004, no primeiro do mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ainda não ficou pronta. A estatal regula a rede nacional de sangue e cuida da exportação do plasma brasileiro e da importação desse mesmo plasma transformado em medicamentos hemoderivados. O senador prossegue:
— Mesmo quando ficar pronta, não dará conta da demanda e vamos continuar importando. Precisaríamos ter pelo menos quatro empresas Hemobrás. A solução no curto e no médio prazo é permitir que a iniciativa privada também processe o plasma e fabrique hemoderivados, de forma complementar ao trabalho da Hemobrás.
A PEC do Plasma teve como relatora na CCJ a senadora Daniella Ribeiro (PSD-PB), que recomendou aos colegas que votassem a favor da proposta. Ela argumenta:
— A pandemia de covid-19 evidenciou o quanto a dependência externa de medicamentos, materiais e equipamentos médico-hospitalares e outros insumos estratégicos pode ser perigosa diante de crises. A pandemia revelou um ponto fraco do país, que é não produzir medicamentos derivados do plasma. No Brasil e no mundo, houve uma queda de doação de plasma e muitos estabelecimentos de saúde ficaram desabastecidos de imunoglobulina.
Na pandemia, o governo brasileiro se viu obrigado a liberar, excepcionalmente, a importação para o SUS de imunoglobulinas sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), diante da iminência de desabastecimento. Para associações de pacientes, a qualidade do produto era duvidosa. Empresas estrangeiras que têm o registro na Anvisa ofereceram ao país o medicamento a preços muito elevados, na esteira da crise sanitária, mas os negociadores do governo não conseguiram baixá-los a valores considerados aceitáveis para os cofres públicos.
O sangue — que no Brasil é sempre doado voluntariamente, sem remuneração para o doador — pode ter vários destinos. Um paciente pode receber a transfusão da bolsa completa em razão de hemorragia numa cirurgia ou num acidente, por exemplo.
O sangue também pode ser dividido. As hemácias (ou glóbulos vermelhos) vão para pessoas que sofrem de anemia. As plaquetas são um tipo de fator de coagulação, sendo utilizadas por pacientes com certas doenças hemorrágicas.
A parte líquida e amarelada do sangue é o plasma, no qual há anticorpos. Por essa razão, é imprescindível para pessoas que têm problemas de imunidade, seja por terem nascido assim, seja por estarem temporariamente imunossuprimidas, como ocorre com pacientes em tratamento de câncer. Ele também tem fatores de coagulação e é importante para os hemofílicos.
O plasma, porém, não costuma ser utilizado diretamente em transfusões, mas transformado em medicamentos. A droga derivada do plasma que as pessoas com deficiência imunológica precisam tomar é a imunoglobulina, uma espécie de concentrado de anticorpos administrado uma vez a cada quatro semanas.
A vice-presidente da Associação Eu Luto Pela Imuno Brasil, Juçaira Giusti, conta qual é a sensação das pessoas que, como ela, sofrem de alguma imunodeficiência primária (ou erro inato da imunidade):
— Vivemos permanentemente com medo. Se não tivermos a imunoglobulina, não teremos anticorpos para nos defendermos de infecções. Uma simples gripe pode ter complicações severas.
De acordo com ela, a situação atual é ainda mais desesperadora porque a necessidade de imunoglobulina no país só aumenta:
— Primeiro, porque nos últimos tempos a imunoglobulina vem sendo receitada para cada vez mais enfermidades. Depois, porque o teste do pezinho foi ampliado para diagnosticar mais doenças nos recém-nascidos, incluindo problemas genéticos do sistema imunológico. Não adianta fazermos mais diagnósticos se não tivermos mais remédios. Embora recolha plasma, o Brasil não produz nenhuma gota de imunoglobulina, o que é uma vergonha.
Os registros oficiais contabilizam 5 mil pessoas com algum tipo de imunodeficiência primária no Brasil. Pelas falhas no diagnóstico, os especialistas estimam que o número real deve ficar na casa dos 160.
Giusti fez em 2021 uma visita técnica à fábrica em construção da Hemobrás, em Goiana, na região metropolitana do Recife. Ela diz:
— Estamos há 20 anos ouvindo promessas de inauguração da Hemobrás. Não podemos esperar mais. Para nós, pacientes, não importa se a imunoglobulina é da Hemobrás ou de uma fábrica privada. O que nos importa é tê-la já, em território nacional, com qualidade e em quantidade suficiente. O mundo todo está brigando pela imunoglobulina e ficamos extremamente vulneráveis sem uma indústria em território nacional.
A entidade mais empenhada na aprovação da PEC do Plasma é a Associação Brasileira de Bancos de Sangue. Os hemocentros privados, que querem o direito de vender para a indústria farmacêutica o plasma que sobra das doações.
O presidente da associação, Paulo Tadeu de Almeida, afirma que o Brasil descarta diariamente uma quantidade imensa de plasma porque só uma parte dos bancos de sangue públicos envia o excedente à Hemobrás, para o processamento no exterior, e nenhum dos bancos de sangue privados faz isso, por falta de contrato com a estatal.
— É como se o plasma fosse uma coisa sem valor. Mas é justamente o contrário — ele avalia. — De qualquer forma, de nada adiantaria se todos os bancos de sangue públicos e privados remetessem a totalidade do plasma para a Hemobrás, já que ela não o processa. Mesmo quando ficar pronta, a Hemobrás não terá capacidade para processar tudo. Ela antes dizia que atenderia a 60% da necessidade nacional e agora diz que atenderá a 80%. Qualquer que seja o número correto, será insuficiente e o país continuará jogando plasma no lixo.
Ele continua:
— Não faz sentido proibir a indústria privada de processar o plasma no Brasil quando é uma fábrica privada que processa o nosso plasma na Europa. A diferença é que essa estratégia do governo não investe dinheiro público aqui, não desenvolve tecnologia aqui, não gera emprego aqui, não recolhe imposto aqui.
Almeida diz que o Brasil pode multiplicar a captação de plasma. Basta que o governo libere para os bancos de sangue privados a chamada aférese, uma técnica de doação de plasma mais eficiente que a doação tradicional. Em vez de se retirar o sangue total e depois separar o plasma, retira-se apenas o plasma (veja o gráfico abaixo). Além de a quantidade do material colhido ser maior, os voluntários podem doar com muito mais frequência. Hoje só os bancos de sangue públicos têm autorização para fazer a aférese.
— Por que o governo não faz isso? Para manter uma reserva de mercado para o setor público. Só que ele próprio não faz a plasmaférese. Esse sonho de achar que o setor público vai dar conta de tudo não é factível. Os hemoderivados são estratégicos para qualquer país, mas tudo indica que nunca vamos ser autossuficientes nesse setor. Além disso, é preciso entender que, quando temos o serviço privado fazendo alguma coisa, ele está desafogando o SUS nessa área.
Em outubro, às vésperas da votação da PEC do Plasma na CCJ, a Associação Brasileira de Bancos de Sangue publicou na internet e nos maiores jornais do país anúncios afirmando que “a Hemobrás não tem tecnologia para fracionar o plasma” e que “ela terceiriza o processo fora do Brasil e traz de volta produtos sucateados, sem a fiscalização de ninguém que não a própria Hemobrás”.
A estatal logo divulgou uma nota pública afirmando que as acusações eram infundadas e caluniosas. Ela disse que tem “tecnologia para fracionar o plasma brasileiro e essa atividade é movida por ações contratuais de transferência de tecnologia” com o laboratório francês LFB e que o seu parque fabril “está em fase de conclusão e de testes de qualificação”. Também afirmou que a fábrica suíça que processa o plasma brasileiro, a Octapharma AG, é “uma das maiores indústrias do segmento de hemoderivados do mundo”, sendo “a afirmação de retorno de produtos sucateados totalmente desprovida de fundamentos”.
A Hemobrás promete inaugurar no ano que vem a sua fábrica de imunoglobulina, fator de coagulação plasmático e albumina (outro medicamento hemoderivado) e ainda neste ano a fábrica de fator de coagulação sintético, que não precisa de plasma.
Em setembro, o presidente Lula anunciou que, para a conclusão das duas plantas, a estatal contará com R$ 800 milhões do novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e que a rede pública de bancos de sangue receberá R$ 95 milhões para se qualificar e enviar mais plasma à Hemobrás.
O presidente da empresa estatal, Antonio Edson Lucena, entende que existem ambições contrárias ao interesse público na proposta que retira da Hemobrás o monopólio da fabricação de medicamentos derivados do sangue humano:
— O que há hoje são um aumento da demanda mundial e uma consequente diminuição da disponibilidade, e os bancos de sangue privados viram nisso uma oportunidade de negócio. Querem mudar toda a nossa legislação com objetivos comerciais. Somos contra.
O mercado das imunoglobulinas movimentou no mundo US$ 10,7 bilhões em 2017 e US$ 15,3 bilhões no ano passado. A estimativa para o ano que vem é de US$ 18,3 bilhões.
Na votação da PEC do Plasma na CCJ, manifestantes que acompanharam a reunião empunharam cartazes com dizeres como “sangue não é mercadoria” e “não à PEC do comércio de sangue”.
Lucena diz que o descarte de plasma que existe hoje ocorre nos bancos de sangue privados, que não destinam o material excedente ao poder público, descumprindo a determinação da Lei do Sangue (Lei 1.205, de 2001), que regulamentou o dispositivo da Constituição que proíbe o comércio de sangue humano. Ele explica:
— Para complementar o trabalho da rede pública, a rede privada tem uma espécie de concessão sobre o sangue, mas não a propriedade. É por isso que quer essa mudança constitucional que lhe permita o comércio. Prefere descartar o plasma a entregá-lo à Hemobrás, como manda a lei.
Em algum momento da tramitação da PEC do Plasma na CCJ, incluiu-se no texto a possibilidade de que os doadores de plasma pudessem ser remunerados, tal como acontecia antes da Constituição de 1988. Diante das críticas, esse trecho foi logo retirado.
— É possível que tenha sido uma estratégia para a aprovação da PEC — conjectura Lucena. — Colocaram o bode na sala e depois o retiraram dizendo: “Já tiramos esse ponto absurdo. Agora a PEC ficou boa e pode ser aprovada”.
O secretário de Ciência, Tecnologia e Inovação do Ministério da Saúde, Carlos Gadelha, descreve a PEC do Sangue como “retrocesso civilizatório” e destaca uma consequência negativa:
— Os defensores da PEC garantem que o Brasil colherá mais. Será o contrário. Muita gente que hoje doa sangue por altruísmo desistirá de doar quando souber que o seu plasma será objeto de comércio e renderá lucro para a iniciativa privada. As doações cairão, prejudicando muita gente que precisa, como as vítimas de acidentes de trânsito que todos os dias chegam às emergências dos hospitais.
Gadelha diz que a Hemobrás está aberta a parcerias com a iniciativa privada, “mas sem que o sangue vire mercadoria”.
Também são contrários à PEC os dois senadores que já estiveram à frente do Ministério do Saúde, Marcelo Castro (MDB-PI) e Humberto Costa (PT-PE) — esse último era o ministro da Saúde quando o presidente Lula sancionou a lei de criação da Hemobrás.
Eles afirmam que a estatal oferecerá medicamentos mais baratos que os das empresas privadas estrangeiras. Segundo os senadores, em vez de se privatizar o plasma, é preciso investir ainda mais na Hemobrás, para que gradualmente amplie sua capacidade de produção.
Humberto aponta outra consequência negativa da PEC:
— O argumento de que as empresas farmacêuticas vão garantir a autossuficiência de imunoglobulinas para o Brasil é falacioso. A PEC não diz que serão obrigadas a comercializar no Brasil. Isso significa que elas poderão comercializar em qualquer lugar do mundo. O que as empresas seguem são as leis do mercado.
A versão atual da PEC estabelece que os hemoderivados produzidos pela iniciativa privada deverão “prover preferencialmente o SUS”.
O senador continua:
— Na minha avaliação, isso é apenas a ponta de um iceberg. Começa com esta discussão do plasma, daqui a pouco vem a discussão de órgãos e outros tecidos e então se abre uma porta e sai da garrafa um gênio que ninguém consegue colocar dentro de novo.
A presidente da Associação Brasileira de Pessoas com Hemofilia, Mariana Leme Battazza, também vê com preocupação a PEC do Plasma:
— A proposta não fala em remuneração aos doadores de plasma, mas poderá haver outros tipos de compensação, como o pagamento da alimentação e da condução no dia da doação. O risco é criar uma indústria de pessoas que usem esse mecanismo como meio de sobrevivência, em especial se for liberada para os bancos de sangue privados a doação por aférese, que permite uma ou duas doações de plasma por semana. Esse risco é elevado porque temos no Brasil uma população de baixa renda muito grande.
Battazza teme que o Brasil volte ao cenário anterior a 1988, em que a doação de sangue podia ser remunerada e as infecções por hepatite e pelo recém-chegado HIV foram às alturas.
— A qualidade do plasma doado pode ficar comprometida, porque serão poucas pessoas doando com uma frequência muito alta. Apesar de o Brasil adotar as melhores tecnologias de detecção de vírus, o risco de contaminações ainda existe, seja por causa da janela imunológica [período entre a infecção por HIV e a produção de anticorpos contra o vírus pelo organismo em quantidade suficiente para serem detectados por testes], seja porque vírus novos ou desconhecidos podem surgir, como é o caso do zika. Não é à toa que o poder público tem o monopólio do sangue no Brasil. Isso se tornou comum em diversas partes do mundo depois do advento do HIV, como forma de garantir a qualidade do sangue e a segurança da população. Não podemos repetir agora os erros do passado.
Uma das vítimas do sangue contaminado foi o sociólogo e ativista Herbert de Souza, o Betinho, que era hemofílico, contraiu o HIV numa transfusão na década de 1980 e militou para que o monopólio público do sangue fizesse parte da Constituição e fosse depois regulamentado. Ele morreu em 1997, sem ver a regulamentação, que só viria em 2001 — a Lei do Sangue também é conhecida como Lei Betinho.
Segundo a presidente da Associação Brasileira de Pessoas com Hemofilia, outro problema da aprovação da PEC do Plasma será a provável demora na sua regulamentação. O monopólio público do sangue previsto na Constituição de 1988 só ganhou a lei regulamentadora 13 anos depois. Ela diz:
— Nos anos que ficarmos sem a regulamentação, as empresas privadas poderão se sentir livres para fazer a coleta, o processamento e a distribuição sem seguir estritamente as regras sanitárias atuais, colocando em risco a saúde tanto dos pacientes que recebem quanto das pessoas que doam. Também precisamos pensar que a regulamentação pode acabar sendo aprovada com regras brandas e flexíveis, o que seria um perigo.
Battazza afirma entender a urgência dos doentes que precisam de imunoglobulina, mas ressalva:
— No curto prazo, o problema da falta de imunoglobulina pode ser resolvido, mas a nossa preocupação é com o sistema nacional de sangue no médio e no longo prazo. Existem outros caminhos para resolver esse problema.
A PEC do Plasma foi colocada em votação aberta aos cidadãos numa consulta on-line do Portal e-Cidadania, do Senado. No momento da publicação desta reportagem, tinha perto de 7 mil votos contrários e quase 2,7 mil votos favoráveis.