Em um governo petista, quem cuida da chave do cofre da União deve sempre se comprometer com a responsabilidade fiscal. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que tem uma visão desenvolvimentista e uma forte presença do Estado como indutor da economia, exige que sua equipe elabore todas as suas políticas públicas e, simultaneamente, demonstre ao mercado que as contas estão sob controle.
Embora a missão tenha sido concluída com sucesso em 2023, Rogério Ceron, secretário do Tesouro Nacional, não se sente aliviado. Ele acredita que as metas fiscais devem ser agressivas para que o mercado acredite que o equilíbrio das contas públicas será alcançado e não apenas “esquentando a cadeira”. Ao fazer um balanço positivo para 2023, o técnico celebra os sucessos com a pauta econômica no Congresso, incluindo a aprovação do novo arcabouço fiscal e várias questões arrecadatórias. Em entrevista ao Correio, destaca a “retomada do diálogo” como uma das principais marcas do ano passado, diminui os riscos associados ao novo marco fiscal e afirma que o nível do debate agora é diferente.
Ele acredita que a confiança do mercado e da sociedade de que an economia está nos trilhos e não corre riscos é suficiente para prever um saldo negativo para 2024, apesar das previsões indicarem que esse saldo estará longe da meta de deficit primário zero. O país entrou em uma rota fiscal sustentável. Ceron declara: “Acho muito difícil alguém discordar”. Para ele, a relação entre dívida e PIB tende a se estabilizar em um horizonte próximo, entre o fim de 2026 e o início de 2027.
Isso cria as condições para recuperar o grau de investimento que foi perdido durante o mandato da presidente Dilma Rousseff em 2015. A expectativa dele é que isso seja concluído até o último ano deste governo. Afirma: “Temos condições de chegar lá ou muito próximo dele até 2026.” Além disso, ele afirma que o Tesouro “vai atuar mais no mercado externo”, usando títulos verdes. As seguintes são as partes mais importantes da entrevista:
O ministro Fernando Haddad é apontado como o grande protagonista do primeiro ano do governo. Qual a sua avaliação de 2023?
Foi muito bom. Claro, 2023 foi um ano muito desafiador, com pautas complexas, que exigiam muito, mas foram bem-sucedidas. Soubemos dialogar, ouvir e aprimorar. O ministro foi muito hábil em conduzir toda a equipe nesse sentido, sempre levando a discussão e explicando tudo com muita transparência, mostrando o plano de voo e os motivos. Todas as medidas tinham caráter estrutural importante por trás, com correções de distorções, buscando aquilo que era importante para o país. O Congresso soube compreender, soube dialogar e, no fim, aprovou as medidas que foram postas. Idem com o Judiciário. Acho que o grande simbolismo de 2023 foi, de fato, a retomada do diálogo.
O novo arcabouço foi aprovado, mas ele ainda está ainda em xeque? Existe chance de o governo entregar a meta de deficit zero?
Preciso esclarecer, porque houve muita confusão do que é o marco fiscal. O marco fiscal não está em xeque. Ele tem um conjunto de regras, inclusive, uma regra para a despesa. Ela está dada e não tem negociação sobre isso. Então, há muita confusão, porque as pessoas acham que, se mudarem a meta, vai ter mais espaço para gasto. A regra do marco fiscal é muito clara quanto ao limite da despesa. Ele vai variar de 0,6% do PIB até 2,5% do PIB, a depender do ano. E o que vai definir ponto desse intervalo são os 70% do que foi a arrecadação da receita recorrente do ano anterior. Isso é o fundamental, porque garante que, a médio e longo prazos, a despesa vai crescer sempre abaixo da receita. A meta fiscal que colocamos na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) (de deficit zero em 2024) é mais agressiva, porque temos o entendimento de que é preciso ter recuperação mais célere, pois vai ser bom e mais saudável para retomar os investimentos. O que está em discussão, agora, é se vamos atingir ou não essa meta mais agressiva. Mas o arcabouço fiscal não está em xeque.
Mas essa meta agressiva é factível?
A meta de equilibrar o fiscal em 2024 é uma meta agressiva e ousada e sempre fomos transparentes em dizer que ela era. E sempre fomos transparentes em dizer que a meta, por definição, como funciona para qualquer empresa, tem que ter um desafio para você se forçar a fazer algo diferente. Tem um número muito claro aqui em relação ao que estamos buscando. Vamos buscá-lo. E todo mundo que faz uma discussão mais séria, mais construtiva e mais profunda sobre esse assunto. Sabe o que estamos falando. Quanto mais próximo chegarmos dessa meta, melhor para o país. É menos importante ser o deficit zero, mas isso amarra, traz um diálogo. As pessoas compreendem quando falamos que estamos buscando o equilíbrio. A sociedade entende que estamos querendo equilibrar a receita com a despesa, então, isso tem um simbolismo importante.
Dos R$ 168,5 bilhões previstos de aumento de receita com medidas legislativas do ano passado, quanto está efetivamente garantido para este ano?
Por ora, nossa estimativa não mudou em relação ao pacote. Até porque tem coisas que não estavam lá e estão contempladas. Elas se compensam. Estamos no primeiro mês agora. Precisamos sentir um pouco esse movimento e o resultado efetivo que esse pacote vai gerar.
Especialistas dizem que devem faltar até uns R$ 90 bilhões…
Essas estimativas são muito difíceis de comentar. Eu sempre falo de forma muito serena sobre isso. Não gosto de discutir porque, no fundo, não deixa de ser uma opinião. Estimativa cabe para todo lado, basta mexer nos parâmetros. Tem gente que estima R$ 90 bilhões. Tem gente que estima R$ 100 bilhões. Nós estimamos um outro número.
Quanto?
Hoje, os R$ 168 bilhões. Eu gosto de recordar que, no ano passado, em fevereiro, vários economistas estimaram, ao fim do segundo semestre, o país em recessão técnica, e crescimento do PIB de 0,7% no ano. O PIB de 2023 cresceu 3%. Não é um erro pequeno.
Que alternativas a Fazenda está buscando, caso a MP da reoneração seja derrubada?
O projeto de lei da prorrogação da desoneração não veio acompanhado por uma medida compensatória de receita. E ela não está prevista na lei orçamentária. Então, ela tem um problema. A MP da reoneração está indicando um caminho para fazer um processo mais gradual, que permite um equilíbrio para manter o que está previsto na lei orçamentária e para nós conseguirmos seguir buscando o equilíbrio. O Congresso encampou e está apoiando a equipe econômica nessa missão de recuperar o fiscal. E (a desoneração) preocupa, porque, de fato, é preciso encontrar uma solução. É isso que o ministro está buscando
e tentando o diálogo. É para explicar aos presidentes do Senado e da Câmara e aos líderes a importância e a dimensão do plano para poder encontrar um caminho. O ministro também tem colocado luz desde o ano passado, sobre a tese do século. Ela foi muito complexa, do ponto de vista das finanças do país. Foi uma votação dividida de uma única decisão que gerou uma perda permanente de R$ 100 bilhões por ano, e mais um estoque de meio trilhão de reais (R$ 500 bilhões), 5% do PIB. Colocado no horizonte de 10 anos, são mais de R$ 1 trilhão e mais de R$ 500 bilhões de estoque. São mais de 10% do PIB em uma única decisão judicial dividida. Isso é emblemático, se desordenou, se desarranjou, e, provavelmente, os próprios ministros do STF não tinham a dimensão, não estavam municiados com as informações devidas dos impactos dessa decisão. Como está, é uma coisa difícil de gerenciar.
Quanto foi a compensação em 2023?
Foi pouco acima de R$ 70 bilhões de compensação. Essa é a nova estimativa da Receita Federal. São 0,7% do PIB. Nesse ajuste fino, se colocarmos os R$ 100 bilhões de fluxo mais esse estoque que está sendo compensado é o deficit primário (de 2023).
E neste ano? Tem alguma previsão para a compensação?
Com regulamentação, isso talvez tenha lá uma prioridade maior quanto a isso, mas vamos ver.
O Congresso pode derrubar esse item?
Não. Acho que nisso há uma compreensão geral. Claro, tem uma discussão. Quem optar por falar “não, no meu caso concreto não vale a pena ficar dentro dessa regra”, é só ele pedir o precatório e recebe todo ele no exercício seguinte. Não é um grande trauma para ninguém.
Há algum estoque de precatório para este ano?
Não. Pedimos autorização ao STF para pagar todo o estoque existente, abatido do que estava previsto no Orçamento de 2023 para não ter nenhum ganho fiscal com isso. Sobrou só o que já está previsto no Orçamento. Agora, pagamos no primeiro trimestre e acabou. Não fica nada de fora. A bola de neve acabou. Ficou só o que está previsto no Orçamento e que já era rotina mesmo.
Analistas falam em deficit em torno de 1% do PIB em 2024. Quais os desafios dessas previsões?
A questão de médio prazo está equacionada. Nós colocamos o país na trajetória (de recuperação fiscal). É sempre complexo falar sobre isso. Estamos buscando, e acho que é possível, sim. Mas só o fato de estar nesse movimento já é um outro patamar. A nossa discussão do ano passado era de outra ordem. Agora, o país entrou numa rota sustentável do ponto de vista fiscal. Acho muito difícil alguém discordar. Podem dizer “não vai ser zero agora, não vai ser em 2025”. Um analista mais pessimista “ah, a trajetória da dívida vai estabilizar só em 2032”, mas ele não está falando que não vai estabilizar. Ninguém mais fica falando que a trajetória é explosiva e vai passar de 100% do PIB. Não é essa a discussão. A discussão agora, do ponto de vista do debate, é: achamos que vamos, sim, estabilizar, mais cedo do que o mercado espera e abaixo de 80% do PIB. Alguns analistas acham que (a dívida) vai estabilizar acima de 80% PIB, num horizonte maior. Ainda assim, é uma discussão que está em outro nível de gravidade. Não que isso não seja preocupante. Estou querendo só colocar as coisas nos andares corretos, de níveis. É uma preocupação constante. O nosso dever é estar preocupado com o fiscal, sempre, mas o nível do debate é muito mais saudável hoje.
Para a Fazenda, qual é o horizonte?
Nós trabalhamos com uma estabilização da trajetória da dívida no fim de 2026, entrando para 2027.
Em que patamar?
Abaixo de 80% do PIB. A partir da estabilização da trajetória da dívida, é só deixar essa outra regra seguir seu curso natural, porque você vai, ano a ano, melhorando o fiscal.
Nessa perspectiva, qual o timing para o país recuperar o grau de investimento?
Acredito que o país consiga fechar o ano de 2026 com o investment grade de volta. De novo, tem desafios. E essa é a beleza do trabalho, de buscar o que é realmente desafiador. Do contrário, só estaria esquentando a cadeira. Acho que tem caminhos, já avançamos. Estamos a dois degraus do nosso objetivo. Então, é preciso fazer, agora, o trabalho de construir em 2024 e 2025 os passos dessas agências. E a cada uma delas que der um passo, nós ficaremos na iminência do grau de investimento. Pode acontecer de não sair? Pode, mas, cada passo importa muito. Cada passo nesse sentido, já tem efeito sobre taxa de juros, o país consegue atrair outros fundos estrangeiros. Há ganhos em cada movimento. Claro que é um simbolismo quando você recupera um grau de investimento. Mas eu acredito que temos condições de chegar lá ou chegar muito próximo dele.
Em relação ao mercado externo, qual a expectativa. Haverá emissões?
Não posso falar muito sobre isso, mas esperamos ser mais atuantes no mercado externo este ano.
Tem a agenda verde, a transição ecológica…
O ministro já falou sobre isso, então é público. Eu não vou detalhar ainda, mas o Tesouro está buscando atuar na transição ecológica. Eu estou cuidando pessoalmente da agenda do hedge (proteção) cambial voltado para a transição ecológica. Nós fizemos, no ano passado, uma emissão fantástica. Todo o mercado reconhece isso. Nós inauguramos com o pé direito e com um passo largo a primeira emissão sustentável do país. Foi muito competitivo, tanto que ela saiu com preço bom, com o spread de país com grau de investimento. Neste ano, vamos ser mais ativos. Vamos ser mais intensos no processo do que fomos o ano passado.
A taxa de juros ainda é um desafio para o Tesouro em 2024?
Cair o juro sempre ajuda. Tem um efeito direto sobre uma parte da curva de juros. Todos os títulos que estão em taxas flutuantes são imediatamente impactados, mas ela tem um efeito indireto ali para subir toda a curva de juros. É muito saudável (a queda dos juros), mas tem de lembrar que ainda estamos com uma política monetária restritiva.
Com informações Correio Braziliense