Sob o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), desenha-se o cenário de que órgãos do Executivo devem atuar de modo pró-ativo e inclusive judicialmente contra desinformação sobre políticas públicas.
Decisões sobre eventuais punições continuariam sendo atribuição do Judiciário. A novidade estaria, por exemplo, em uma atuação da AGU (Advocacia-Geral da União), órgão que representa o governo juridicamente, de ingressar com representações judiciais contra aqueles que veja como autores de conteúdos mentirosos.
A posição de especialistas consultados pela Folha sobre essa atuação não foi consensual. A maior parte aponta que uma atuação, nesse sentido, por parte do governo pode abrir um precedente que represente risco à liberdade de expressão, diante da possibilidade de ser instrumentalizada para assédio judicial contra críticos e opositores.
Por outro lado, há quem entenda que frente a um contexto de lentidão e inércia da PGR(Procuradoria-Geral da União) e momento de grande instabilidade política e riscos à democracia, a adoção deste tipo de inovação seria adequada e proporcional.
Em decreto com a estrutura do novo governo, criou-se uma Procuradoria de Defesa da Democracia da AGU. Entre suas competências, foi incluída a representação judicial da União “em demandas e procedimentos para resposta e enfrentamento à desinformação sobre políticas públicas”.
Ainda há uma série de indefinições sobre como a unidade atuará e qual será a sua estrutura. Também não há uma definição de quando ela começará efetivamente a funcionar. O decreto que criou a unidade entra em vigor no dia 24 de janeiro. Depois disso, será apresentada sua regulamentação interna, que ainda passará pela consulta pública. Só então a Procuradoria de Defesa da Democracia iniciará seus trabalhos.
Nesta sexta-feira (20), foi publicada uma portaria pela AGU instituindo grupo de trabalho que tem por objetivo contribuir na elaboração dessa regulamentação, na composição estão entidades da sociedade civil e órgão governamentais, cujos respectivos representantes ainda devem ser indicados. No caso da comunidade acadêmica e científica, há a nomeação de 12 professores homens e nenhuma mulher.
Em entrevista à Folha publicada nesta quinta (19), o ministro-chefe da Secom (Secretaria de Comunicação da Presidência), Paulo Pimenta, afirmou que fake news acusando o governo de ter cometido “fatos delituosos inverídicos” serão encaminhadas para a AGU e para o Ministério da Justiça, para que as pessoas que produziram a desinformação sejam identificadas e respondam por isso.
“O que nós vamos fazer é identificar o que for mentira, responder e encaminhar. Dependendo do caso, se for um crime, para o MP, se for desinformação, para a AGU, se for uma informação equivocada, vamos tomar a medida que for necessária”, afirmou.
O ministro também respondeu sobre quem determinaria se a postagem é ou não desinformação, afirmando que trataria apenas de fatos objetivos e não de conteúdo político ou ideológico. “Vamos pegar um exemplo: circulou uma fake news dizendo que Lula sancionou uma lei que aumenta auxílio reclusão para R$ 1.764. Isso é mentira, não existe essa lei”, explicou.
De modo geral, os especialistas ouvidos pela reportagem apontaram que, no caso de conteúdos online identificados serem crimes, a provocação ao Judiciário dependeria do Ministério Público. Ou seja, a AGU não poderia apresentar uma denúncia diretamente em juízo, mas poderia remeter os dados ao Ministério Público —que inclui a PGR—, a quem competiria então apresentar uma denúncia ao Judiciário.
É a partir da aceitação da denúncia que é iniciada uma ação penal e um investigado passa a ser considerado réu.
“Ela [AGU] não pode nem abrir inquérito, nem apresentar denúncia, nem cumprir o papel de promotor durante um processo criminal”, diz Francisco Brito Cruz, doutor em direito e diretor-executivo do InternetLab. “Ela pode fazer o que um advogado pode fazer pelo seu cliente, no caso o cliente é a União.”
Paulo Rená, doutorando em direito na UnB, com pesquisa sobre regulação de políticas públicas de direito e tecnologia, aponta o que vê como uma exceção. “No caso de agentes públicos praticando desinformação, está em análise no STF se a AGU também poderia propor ações de improbidade administrativa ou se seria atribuição exclusiva do MP.”
Flávia Lefèvre, advogada especialista em direitos digitais, por outro lado, tem o entendimento de que também é possível que a AGU, por meio de suas Procuradorias, apresente denúncia penal de modo mais abrangente. Isso porque, frisa ela, na lei orgânica sobre o órgão, não fica especificada essa limitação. “Portanto, eu entendo que pode ser tanto matéria civil como matéria penal.”
No caso de ações da esfera civil, o entendimento geral é de que, em tese, a AGU poderia fazer uma representação diretamente ao Judiciário, a quem caberia decidir se o pedido tem ou não cabimento. Nesse caso, há um debate sobre os riscos que essa atuação no âmbito do combate à chamada desinformação pode gerar.